Análise: "A Guerra do Fogo" (1981)


            O filme A Guerra do Fogo, de Jean Jacques Annaud, trata da vivência de indivíduos num contexto datado há aproximadamente 80 mil anos. A partir do enredo, em que três homens primitivos saem em busca do fogo - algo essencial para a sobrevivência de sua tribo -, é possível refletir sobre o processo de humanização, a origem da cultura e a importância do fogo como um todo. Tal busca é permeada por dificuldades, obstáculos, contato com o outro e, principalmente, pela aquisição de racionalidade e afetividade.
Diante disso, há um diálogo entre o filme e os dizeres de João Pereira Pinto (1996), Walter Bodmer (2009) e Marcel Mauss (2003), pois é evidente que, constantemente, são abordadas questões cujo objetivo é diferenciar e afastar o ser humano da sua condição animal, de modo que cognição, racionalidade e técnica corporal são elementos de extrema importância. No último elemento encontra-se o maior interesse da proposta da disciplina Laboratório de História do Corpo, uma vez que “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem.” (MAUSS, 2003, p.407). Defronte a essa ideia, é possível destacar a importância do conhecimento das maneiras mais primitivas de se utilizar o corpo para que, posteriormente, pensemos nas formas contemporâneas, a fim de direcioná-las ao estudo do corpo dançante.

A Guerra do Fogo - Filme 1981 - AdoroCinema

            No início do filme, somos apresentados a uma tribo de indivíduos primitivos. O fogo já se faz presente a partir do momento em que os sujeitos reúnem-se em volta dele a fim de se aquecerem. Era notória a coletividade entre os integrantes da tribo, porém, nessa situação, tratava-se de uma necessidade de sobrevivência. Não havia ali relações envolvendo qualquer tipo de afetividade, afinal, a resposta aos impulsos e necessidades do corpo sempre seria mais forte. Partindo da visão de Pinto (1996), a tribo encontrava-se unida como um bando, de modo que os indivíduos não se diferenciassem um dos outros.
            A comunicação entre os personagens envolvia sons curtos, repetitivos e muitas vezes acompanhados de gestos para simbolizar ações ou coisas concretas. Como a fala ainda não havia sido desenvolvida dentro daquele grupo de indivíduos, eles utilizavam do próprio corpo para esse fim. Além disso, o uso de instrumentos ainda não é algo fortemente presente, com exceção do objeto que conserva o fogo. Porém, eles possuem seus modos, ainda bastante primitivos, de realizar as atividades que supram suas necessidades.
            É possível observar uma ação direta dos indivíduos em relação à natureza, de modo que o embate com inimigos e caça ocorre de forma corpo a corpo, há a coleta manual do que servirá para a alimentação e manipulação manual da caça. O comportamento técnico da tribo principal mostra-se bastante rudimentar. Por outro lado, é importante destacar o uso recorrente do corpo para o cotidiano dos indivíduos, visto que ainda não há instrumentos que intermedeiem tais práticas.
            Dadas as características da tribo como um todo, o filme segue até o momento em que eles perdem o seu fogo durante um conflito com inimigos. Não seria problemático se os indivíduos tivessem o domínio desse elemento. Contudo, a realidade era que a tribo que o tinha sabia como mantê-lo, protege-lo, mas não o produzia. A partir disso se dá a luta pelo fogo, mas para roubá-lo.
            Após da ida de três dos homens da tribo em busca do fogo, há a oportunidade de ter contato com tudo o que há além de seu convívio habitual. Passa a ser presente na vida deles o que Pinto (1996) cita como o Santo Obstáculo.
Ao longo do caminho que os levaria ao seu objetivo, há o enfrentamento de inúmeras dificuldades. É aí que o repertório de experiências serve de incentivo para o desenvolvimento de suas mentes e o aprendizado de novas práticas. Uma mulher que havia escapado de antropófagos foi fundamental nesse processo, pois sua tribo, tão evoluída comparada a dos três homens, proporcionou o conhecimento de um conjunto de novas práticas e maneiras de se sobreviver. Trata-se de uma cultura. Tal experiência induziu os personagens ao entendimento do diferente.
Tecnologias como choupanas, armas de maior alcance, armadilhas como estratégia, vasos, tinta corporal, plantas medicinais e o próprio domínio do fogo são novidade para os três homens. A introdução desses instrumentos como mediadores na relação do indivíduo com o que Líbano chama de quatro elementos fundamentais - “[...]do homem consigo mesmo, do homem com os outros homens, do homem com a natureza, do homem com o transcendente.” (PINTO, 1996, p.80) - estimula a aquisição de conhecimento e, consequentemente, a racionalidade. Questões comportamentais também executam esse papel dentro das conquistas cognitivas dos personagens. O riso, por exemplo, é incorporado aos seus hábitos simbólicos ao longo da jornada por causa do contato com a cultura da mulher da outra tribo.
Outro elemento de extrema importância nesse processo é o desenvolvimento da linguagem, algo que, para Bodmer (2009), tem papel fundamental na transmissão de cultura e para Pinto (1996), serve de impulsionador para as relações humanas como uma organização social e produção de trabalho.
Para a tribo da mulher, o diferente não é apenas visto como um inimigo em potencial, mas como alguém para ser integrado ao grupo a fim de trocar conhecimento, o que contribui de forma relevante para a distinção entre o indivíduo em relação consigo mesmo e com o outro. É possível observar isso quando o homem da tribo principal foi cheirado e checado quanto à sua capacidade de procriação e, posteriormente, aparece pintado como eles. Assim, a integração e convívio de um dos homens com a moça proporcionou o conhecimento do sujeito por ele mesmo e do próximo, tendo como resultante a afetividade (PINTO, 1996).
Após todas essas experiências, os três homens, agora acompanhados pela mulher, retornam à sua tribo trazendo consigo não apenas o fogo que tanto buscavam, mas também um vasto repertório de conhecimento. Porém, durante a comemoração da volta do elemento à tribo, ele se apaga novamente. É nesse momento que um dos homens encontra a oportunidade de mostrar aos outros o que aprendeu. Diante de sua falha em manusear os instrumentos que fariam fogo, a mulher dá continuidade ao processo. Nota-se aí um ato de solidariedade, cooperação e altruísmo para com o outro como sinal de humanidade, resultando em uma coletividade não apenas instintiva.
Nesse contexto, temos o fogo como mediador da relação do homem com a natureza. Ao dominá-lo, há condições de desenvolvimento da cognição do indivíduo, visto que suas funções permitem que o homem seja apresentado a outras possibilidades de uso de instrumentos e do próprio corpo em relação a eles.
Por fim, como consequência do convívio e conhecimento do homem com a mulher da outra tribo ao longo de sua jornada, se expressa ali um vínculo afetivo. Ao saber que ela carrega um filho seu na cena final, relações de parentesco são definidas, de modo que se inicia ali outro entendimento de relações humanas (PINTO, 1996).
Para representar de forma fiel o homem primitivo em um contexto de evolução, é importante que o trabalho de corpo dos atores envolva um retorno aos padrões de tal período. As capacidades motoras, comunicativas, comportamentais e cognitivas pertencem a um nível distante comparado ao ser humano contemporâneo, porém não é inacessível. Trata-se de um ser que ainda está se descobrindo corporalmente, visto que características como o bipedalismo, o livre uso das mãos e reestruturação da laringe para a fala são conquistas relativamente recentes no contexto do filme. Portanto, são questões relevantes de serem levadas em conta para a construção da fisicalidade dos personagens de cada tribo.

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            Diante do contexto do filme A Guerra do Fogo e dos dizeres de Pinto (1996), Bodmer (2006) e Mauss (2003), é possível refletir a condição do ser humano quanto a sua existência. O que somos hoje é a resultante de um vasto processo de experiências e aprendizagens, tanto como indivíduos quanto como espécie. Assim como para os personagens do filme, o contato com o diferente reverbera em nossas vivências, constituindo uma nova cultura a ser valorizada e praticada.
            Sem os inúmeros obstáculos enfrentados pelos personagens não existiria o aprendizado. A espécie humana chegou aos níveis cognitivos atuais graças a um processo que perdura há tempos. Características como afetividade, coletividade e racionalidade manifestaram-se inicialmente há milhares de anos, porém elas não ficam estagnadas. A espécie humana permanece descobrindo e redescobrindo questões que definem nossa humanidade. Nesse processo, utilizar-se do corpo é fundamental, pois ele “[...] é o primeiro e o mais natural instrumento do homem” (MAUSS, 2003, p.407). Assim, são criadas cada vez mais estratégias para suprir nossas necessidades, sendo elas mais próximas da animalidade, através do instinto, ou dos princípios racionais que nos torna humanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORDMER, Walter. Prefácio. In: PASTERNAK, Charles (org.) O que nos torna humanos? Trad. Pedro Elói Duarte. 1ª ed. Edições Texto & Gráfica: Lisboa, 2009. p 9 -17.
MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Nunes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. (p.401-422)
PINTO, João Pereira. A Guerra do Fogo (O processo de humanização). In: Cad.geogr., Belo Horizonte, v.6, n.8, p. 79-87, dez.96.

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