Como os cortes de verba nas universidades e na educação afetam a população brasileira?
Para entender a pergunta acima, é
necessário que entendamos o contexto por trás da educação superior no Brasil.
Primeiramente, a universidade no
Brasil surge no ano de 1920, na capital do país da época, Rio de Janeiro. A
Universidade do Rio de Janeiro (atual UFRJ), quando criada, tinha mais foco na
transmissão do conhecimento, ou seja, no ensino, deixando mais de lado a
pesquisa científica.
Nesse sentido, 11 anos depois, em
1931, durante a Era Vargas, foi decretado o Estatuto das Universidades Brasileiras.
Neste ficava determinado que as universidades poderiam ser públicas ou privadas.
Deveriam, também, conter três dos seguintes cursos: Direito,
Medicina, Engenharia, Educação, Ciências e Letras.
Além disso, um ponto que vale destacar é a criação da USP,
a primeira universidade do estado de São Paulo, em 1934. Esta, por sua vez, foi
criada com o intuito de promover, pela pesquisa, o progresso da ciência;
transmitir, pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito
ou sejam úteis à vida; formar especialistas em todos os ramos da cultura, bem
como técnicos e profissionais em todas as profissões de base científica ou
artística e realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e
artes por meio de cursos sintéticos, conferências e palestras, difusão pelo
rádio, filmes científicos e congêneres, segundo o Artigo 2° do decreto n°
6283/34.
Nesse espaço de tempo, os cursos de Educação tomaram maior
fama pelo país, visto que havia um foco muito grande em formar professores especialistas
que, mais tarde, depois de formados, dariam aula ao ensino secundário, isto é,
seriam realocados para fortalecer a educação básica. No entanto, isso foi um
fator preponderante para que diversos atritos existentes hoje entre
universidade e escolas públicas, seja no que diz respeito aos investimentos
governamentais, seja na completa desconexão entre esses dois, que deveriam
caminhar de mãos dadas.
Fonte da imagem: Fundação CECIERJ. A foto mostra a UFRJ
em 1920.
Segundo o podcast da Folha, o Café da
Manhã, na edição de 3 de maios de 2019, o governo teria cortado 30% do repasse
de verbas para três faculdades específicas, a UnB (Brasília), a UFBA (na Bahia)
e a UFF (Federal Fluminense em Niterói) por estarem fazendo “balbúrdia”. Mais tarde, a medida foi destinada a todas as universidades no Brasil. Segundo o
diretor editorial do portal Nova Escola, Leandro Beguoci, “é necessário
desmistificar que a universidade brasileira é irrelevante e esse corte pode
levar a inviabilidade de funcionamento de várias universidades”. Vale ressaltar
que as três universidades citadas anteriormente cresceram exponencialmente e é
inquestionável o quanto de conhecimento científico pertinente elas têm
produzido para o país.
Para sintetizar esses atritos existentes na nossa educação,
bem como as barreiras que existem a uma educação de qualidade no país, conversamos
com Vanessa Rodrigues, que cursa História na UNIFESP (Universidade Federal do Estado
de São Paulo) de Guarulhos.
P: “Vanessa, na sua realidade de estudante e, futuramente,
uma possível professora, por que há uma desconexão, isto é, um abismo entre o
ensino superior e o ensino básico e quais são as consequências desse
distanciamento?”
R: “A verdade é que a universidade, principalmente a pública, onde mais
se desenvolve pesquisa, ainda é uma realidade a parte da sociedade. As pessoas,
no geral, não veem essa ligação da universidade com o que acontece fora dela. Acho
que falta ainda aproximar mais, ou seja, mostrar pras pessoas a importância da
universidade pública e como isso afeta o nosso dia-a-dia, seja na área das
ciências aplicadas, como hospitais universitários que atendem a população de
forma gratuita, seja nos outros âmbitos de pesquisa, como a engenharia
ambiental que vai trazer uma nova forma de energia, seja uma técnica das Ciências
humanas que vai melhorar o ensino nas escolas, enfim.
No meu ponto de vista, um dos fatores que justifica o apoio que parcela
das pessoas deram aos políticos que atacaram as universidades, principalmente nos
cursos da área de humanas, é por não saberem o que acontece dentro de um campus.
No entanto, cabe à faculdade resolver. Não adianta jogar nas costas dos governadores,
prefeitos, presidente. Parte da academia não querer ser elite, mostrar que ela
está ali pelo povo, que os alunos fazem parte do povo e o que é desenvolvido
ali é da sociedade. Vale lembrar, também, que existe muito elitismo dentro da
faculdade, e muitas pessoas, grande parte das universidades públicas que são
referência aqui no Brasil, gostam desse sentimento elitista, como forma de
identidade até. Pra você ter uma ideia, existem professores e alunos que tem
essa postura, a qual é extremamente nociva e desgasta a relação da sociedade
com a universidade. Porque, por exemplo, se você pega uma pessoa que não tem
acesso à informação, ela pode não ter noção do que acontece lá dentro. Logo, se
alguém chegar e falar a essas pessoas que lá só tem bagunça, só tem festa, que só
gastam dinheiro, as chances de ela aceitar esse pensamento são muito maiores.
A universidade pública, ademais, durante muitos anos construiu esse
perfil de ‘faculdade é coisa de elite’, de que o que acontece lá dentro fica lá
dentro, de que os conteúdos acadêmicos são para acadêmicos e não à população e
que o conhecimento não é pra qualquer um. E isso, claramente, precisa ser
quebrado. A universidade deve estar integrada à sociedade e não acima dela.
Hoje, o campus universitário demanda muito investimento e é justo que
o povo cobre resultados e cabe à universidade mostrar que isso gera retorno,
porque senão as pessoas sempre vão acreditar quando políticos disserem que não
vale a pena investir.
Claramente, não são iniciativas que serão construídas do dia pra
noite e iniciativas como vocês do ‘Entusiastas’ com certeza contribuem muito
para ajudar a corrigir esses erros!
Um ponto muito interessante a destacar são aquelas visitas que
estudantes fazem ao campus de determinada faculdade e conhece os cursos que tem
lá, como o UPA (Unicamp de Portas Abertas). Aqui na UNIFESP, a gente tem esse
evento uma vez por ano e são só para alunos aqui de Guarulhos, visto que é uma
cidade muito grande. Talvez se esses programas fossem feitos logo no começo de
cada ano e diluídos durante o primeiro semestre, isso facilitaria a escolha dos
vestibulandos por uma carreira a seguir, bem como um curso. E, como dito
anteriormente, a maioria desses eventos ocorre no decorrer do segundo semestre,
momento em que os alunos já estão prestando vestibulares e já fizeram sua
escolha na hora da inscrição e perde um pouco do sentido, afinal você quer
conhecer as faculdades antes de ter que escolher entre elas. E ainda assim, mesmo
com esses eventos, existem pontos a melhorar. Quando você é recepcionado, por
exemplo, não é comentado sobre como funcionam as aulas, do que é trabalhado e
fala mais sobre a grade curricular. Contudo a realidade dentro de um curso em
uma universidade é totalmente diferente do que a gente imagina antes de vive-la.
A universidade, principalmente a pública, poderia desmistificar um pouco tudo
isso. Um caminho para aproximar essa realidade seria uma contramão desses
eventos: a faculdade visitar as escolas. O Brasil é um país muito grande e
existem inúmeras escolas e isso é realmente difícil, mas não é impossível. Com
organização por parte das instituições de ensino médio e ensino superior tudo
fica mais fácil, bem como organizar nas cidades e fazer bom uso de espaços
públicos que tem que ser usados para a população, afinal de contas é mais fácil
movimentar 10 pessoas da UNICAMP pra Atibaia ou 15 mil alunos, em uma estimativa,
de Atibaia para UNICAMP? Tem que ser levado em consideração que as escolas
muitas vezes não têm como arcar com esses gastos.
Nesse sentido, muitas vezes uma escola particular pode levar vantagem
por ter professores, diretores e coordenadores formados nessas grandes
faculdades. Nas escolas públicas também existem excelentes professores e não
tenho dúvidas disso. No entanto a má qualidade na gestão escolar mostra-se como
um empecilho, sei disso, pois já estudei em escolas públicas também.
A consequência de tudo isso é um Brasil desigual com universidades
elitizadas, um abismo entre o ensino superior de ótima qualidade e o ensino
fundamental e médio com baixos índices de aproveitamento.”
Por essa lógica, ao perceber que existe essa ilusão do que é
a universidade e quais são suas funções, conversamos com a Professora Doutora
Kelly Pascoalino acerca da importância do incentivo às universidades e
como isso pode fazer a diferença frente a outros países. A professora fez doutorado
na área de Física Nuclear pela USP (Universidade de São Paulo) e coordena
diversos projetos acadêmico-científicos, bem como os leva às grandes feiras de
ciência e tecnologia espalhadas pelo Brasil, como FEBRACE, MOSTRATEC e FEMIC,
por exemplo.
P: “Para você, que vivencia o lado acadêmico, por que é
importante investir nas universidades, em pesquisa e ciências (de qualquer área
que seja)?”
R: “Acho
importante começar pontuando que o mundo vive em constante transformação e que,
por este motivo, a formação profissional também se transforma, evolui. As
necessidades do mercado de trabalho se alteram e a comodidade e segurança da
vida humana tomam cada vez mais um papel importante no desenvolvimento de
ferramentas, substâncias e componentes.
Este é um
dos motivos fundamentais para a necessidade de investimento contínuo na
educação, para acompanhar essa constante transformação do mundo e das
necessidades em cada área profissional.
Agora, mais
especificamente na ciência! Olha, já conversei com inúmeras pessoas sobre o
assunto e, infelizmente a maioria delas não consegue assimilar a importância do
investimento em ciência, pesquisa, relacionando com o impacto real em sua vida.
É importante notar que, tudo o que temos hoje, desde medicamentos e
procedimentos à tecnologia, é resultado de pesquisa e ciência. Sabemos, por
exemplo, que a internet não foi inventada para a comunicação em chats, uso de
blogs ou pesquisa, ela foi resultado de pesquisa e inovação para tecnologia
militar. Anos depois chegou até nós, até nosso dia a dia. Pessoas a usam para
trabalhar, inclusive, e, por este motivo, consideram-na essencial. De maneira
análoga vou dar um exemplo um pouco mais grandioso. Creio que ninguém aqui
gostaria de vivenciar um processo de extinção da raça humana devido a colisão
de um asteroide com nosso planeta, como ocorreu com os dinossauros, não é
mesmo? Hoje existe uma forte linha de estudos que identifica e monitora todos
os objetos próximos ao planeta Terra, verificando em tempo real se algum deles
pode ou se coloca em órbita de colisão com o planeta. Mas, para isso, foi e
ainda é necessário o desenvolvimento de equipamentos, sensores e componentes
eletrônicos cada vez mais precisos e avançados.
E claro,
para finalizar, não poderia deixar de mencionar a importância do incentivo a
ciência na área médica. Todos os medicamentos, procedimentos, equipamentos a que
temos acesso hoje e que não fazem mais com que o ser humano se torne suscetível
a uma série de doenças triviais, é resultado de muita pesquisa, não somente
ligada a área médica em si, mas, também à Física, Engenharia, entre outras.
Resumindo:
sem pesquisa, sem ciência, paramos no tempo e deixamos de ser capazes de
evoluir.”
P: “Como
isso pode afetar a Visão do Brasil perante outros países que são referência em
ciência, como a Alemanha?”
R: “Infelizmente
e, criando um gancho com o fim da última pergunta, se o Brasil não passar a
investir novamente em ciência e tecnologia, o país irá parar. Mas o que
significa isso de fato?
Significa,
por exemplo, que, enquanto o mundo enfrenta novas doenças e se prepara para
novos desafios, aqui ainda estaremos suscetíveis e incapazes de responder a
essas ameaças.
Significa
ainda que, por não estar na vanguarda da ciência e tecnologia, para acompanhar
o crescimento global, passaremos a depender cada vez mais de produtos,
procedimentos e mão de obra importados.
É necessário, de forma imperativa que haja um grande movimento de
educação científica à população. Quando o país investe em alfabetização
científica, cria-se uma nação que acredita e defende a ciência com unhas e
dentes, cobrando do setor político e, independente de afinidades partidárias,
aquilo que de fato é importante para o desenvolvimento científico, tecnológico
e, portanto, social do país.”
Conversamos, também, com o Professor Mestre Bruno Oliveira,
formado em história pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) e Mestre na
área de Educação pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), sobre como a
educação e a formação em universidades, bem como a carreira acadêmica podem
interferir diretamente na população e ressignificar determinadas realidades.
P: “Professor, quais são os impactos que uma boa educação e
formação profissional de qualidade podem trazer aos índices socioeconômicos do
país, como o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano), por exemplo?”
R: “Seguinte cara, o que posso dizer, primeiramente, é que
quanto melhor a educação melhor a qualidade de vida. Povos que investem em
educação sempre têm geração de emprego, obras sociais, bons resultados para a
população. Tudo isso sem falar numa melhora da qualificação da mão de obra, que
irá contribuir no setor industrial e comercial do país, gerando renda e fazendo
a economia interna funcionar. Pra você ter uma ideia, por que importamos tanta
coisa de outros países? Primeiro ponto é porque o mercado tem suas
impossibilidades, mas a perspectiva principal é a dura realidade de que os
produtos internacionais são melhores que os nacionais. Vemos isso nas roupas,
eletrônicos, e também em livros e filmes, basta pegar as listas de produtos
mais comprados/consumidos.
Não há planejamento para que exista um desenvolvimento da
indústria nacional, mesmo que haja bons estudantes, bons trabalhadores e boas
mentes. O fato é que aqui no Brasil ainda há uma forte visão do lucro em
primeiro lugar e ninguém está realmente preocupado com o retorno que uma boa
educação pode dar para a população que precisa desse ‘desenvolvimento’ e desses
produtos.
Uma boa educação gera uma boa indústria que gera
desenvolvimento e por fim progresso. Essa premissa de relacionar educação e
indústria é um ideal positivista que surgiu no século XIX, com Auguste Comte, e
ele é importado ao Brasil pelo Marechal Deodoro. A nossa bandeira tem uma frase
positivista, ‘Ordem e Progresso’. Então tudo isso vai construir o ideal
brasileiro do início do século XX. Existe, portanto, uma ideia muito clara de que
o ensino, uma população preparada, o jovem preparado, de que tudo isso trará boas
recompensas, bom futuro, entre outras coisas, só que no Brasil isso não
acontece. Primeiro porque aqui não existe uma educação de qualidade para mais
de 90% da população e, segundo, porque não há interesse por parte das classes
mais abastadas que as classes mais frágeis socioeconomicamente falando cresçam.
A verdade é que no Brasil existe um abismo social gigantesco. Isso é um dos
principais motivos pelo qual o país não obtenha bons resultados nesses índices,
mas com certeza é um dos agravantes.
Vamos agora entender esses índices do IDEB e outros que
exercem função parecida. Basicamente, eles servem pra mostrar aos empresários e
investidores que o país investe na qualificação de mão de obra, ponto. E quando
um Estado investe em mão de obra ele recebe um baixo índice de “Risco- País”, o
EMBI+ (Emerging Markets Bond Index Plus), que
irá orientar
os investidores estrangeiros a respeito da situação financeira de um mercado
emergente. Por isso esses índices demonstram importância no país, bem como destacam
a importância da educação na economia.
P: “Haja vista tudo que foi citado anteriormente, como a
educação pode ressignificar determinadas realidades sociais?”
R: “O acesso a uma faculdade e todos os
recursos oferecidos por ela, aliados a uma boa educação, um bom preparo e toda
a trajetória do aluno tendem a abrir mais portas e inserir o aluno no mercado
com mais facilidade.
De modo geral, o acesso a uma boa instituição
pode ajudar o aluno de ‘N’ maneiras, mas também depende do seu engajamento.
Mas também não podemos negar que muitos
cursos que promovem boas carreiras, às vezes, estão fora da universidade também.”
Com isso, chegamos ao fim da nossa conversa com
discentes e docentes acerca do investimento na educação e nas universidades.
Quero deixar claro aqui nessas linhas um
posicionamento específico meu de luta pela educação de qualidade no país.
Acredito verdadeiramente que ainda dá pra mudar essa realidade com bastante
esforço, luta e reformas, de fato, pertinentes.
Outrossim, gostaria de expor meu agradecimento a todos
os envolvidos nessa publicação e que colaboraram para que ela fosse realizada, o professor mestre Bruno Oliveira, a professora doutora Kelly
Pascoalino e a estudante universitária Vanessa Rodrigues e toda a contribuição
que eles trouxeram para enriquecer essa matéria que deu muito trabalho pra fazer.
Espero que tenham gostado!
Muito obrigado por lerem até aqui!
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