Tem algo muito errado com a justiça brasileira

Nossa justiça é desigual e pune diferente as pessoas

Em dezembro de 2017, Eliane foi condenada por tráfico de drogas. Mulher negra, seu crime, enquadrado no artigo 33 da Lei de Drogas, foi carregar no cós da calça 1,4 grama de maconha. Eliane visitava o filho, que cumpria pena na Fundação Casa, em São Paulo, quando foi flagrada na revista íntima.
Sem antecedentes criminais, Eliane confessou que a droga foi um pedido do menor, ameaçado dentro da unidade. “Eu fiquei com medo, acabei levando. Estou arrependida”, justificou ao juiz.
Em sua defesa, a Defensoria Pública afirmou que a quantidade de maconha era insignificante para uma condenação em regime fechado. A droga encontrada com Eliane equivale a um sachê de sal.
Mas o que poderia ser um atenuante de pena com a confissão espontânea parece ter se tornado um agravante diante das afirmações do magistrado. Para ele, o regime fechado era a única decisão “compatível com a gravidade da conduta”, além de ser necessário para que a acusada pudesse “refletir sobre o erro e mudar os seus valores”.
Além disso, um importante detalhe não passou despercebido no julgamento. A ré estava grávida de nove meses. E por ser gestante “deveria ter pensado melhor” antes de praticar o crime, disse o juiz na sentença que a condenou a um ano, onze meses e dez dias. A ré, no entanto, pôde responder em liberdade. O relato é da Agência Pública, e ilustra bem o propósito desse texto- Mostrar que nossa justiça é desigual e pune diferentemente.

Ao ligar a tv, ler um jornal ou até mesmo conversar com o senhor do ônibus, a resposta para os problemas de nosso país, violência, corrupção, roubo, deverá ser a mesma: precisamos punir mais. É simples, punir mais.
Acontece que nosso país já é um dos que mais pune no mundo, com a 3ª maior população carcerária do planeta, onde 40% dos presos estão em prisão provisória -ou seja, ainda não foram julgados-. Para além disso, dos 53% dos presidiários que poderiam cumprir pena em regime aberto ou semiaberto, apenas 18% o fazem.
Além de falso, o discurso de que nosso país pune pouco esconde que a prisão não garante segurança a ninguém, mas o contrário. Nossas cadeias fortalecem o crime ao forçar o preso a escolher entre facções, o que o manterá na ilegalidade após cumprir a pena, e colocar ladrões de pão e leite ao lado de criminosos violentos. 
Quem paga por isso é o jovem, pobre, e na maioria das vezes negro, que é levado a prisão por crimes evitáveis e passíveis de reabilitação, mas que é jogado em meio a celas superlotadas, com ratos e baratas, sem médicos e sujeito a contínuas agressões por parte de algumas das forças policiais. Esse jovem, por um crime menor, é exposto como um problema maior do que o sonegador que tira dos cofres públicos dezenas de milhões de reais- E sai impune.

Se depois de tudo isso você ainda acredita que nossa justiça trata a todos igualmente, repense. Quando o assunto é tráfico de drogas, proporcionalmente, negros são condenados mais frequentemente que brancos, embora sejam presos portando uma quantidade inferior de drogas, segundo levantamento da Agência Pública. Ou seja, com menos drogas, são mais presos.
Ao se expressar, uma juíza de Campinas disse que o réu, branco, loiro e de olhos azuis, “não tinha cara de bandido”. E isso tudo ocorre no país que, segundo o World Justice Project, é o 94º pior entre 101 países no ranking de descriminação no sistema criminal. Quase uma lanterna.
Isso tudo é reflexo de um elitismo estruturado nas raízes do nosso sistema judiciário. Se os negros correspondem a mais de 50% da população, entre os magistrados são apenas 16%. Também é essa parcela da população que muitas vezes vive sem ter seus direitos respeitados- Em lugares onde o Estado não alcança e o crime é a única saída. Isso tudo acontece no Brasil, século XXI. Mas começou lá trás, com os mais de 8 milhões de cativos trazidos da África para nosso país, que, sem oportunidade de emprego após o fim da escravidão, estabeleceram suas precárias moradias nos morros do Rio de Janeira e nas periferias de todo o Brasil, com seus descendentes vivendo na informalidade desde então. É impossível falar do nosso país sem levar isso em conta.
A justiça brasileira tem alvo, que é o jovem de periferia. Quem paga por isso é toda sociedade, que sofre com a violência, o medo e as mortes advindos de uma política criminal que, ao invés de coibir, acaba estimulando o crime. Jovens que poderiam ter um futuro de sucesso e policiais cumprindo seu dever morrem em uma guerra sem sentido. Mas por quê? Ou melhor, por quem?

Como ficariam os jornalecos sensacionalistas se vivêssemos em um país seguro? As empresas de segurança, e pior, os abutres da privatização do sistema carcerário, que lucram com a criminalidade? Se os gastos nas prisões são altos, como então temos uma alimentação ruim, falta de recursos básicos e penitenciárias utilizando gansos(!) no lugar de guardas? O dinheiro que alguns dizem estar sendo “desperdiçado” com os presidiários está indo para algum lugar, que é o bolso dos defensores do sistema prisional, nas grandes corporações e na política.

Agora imagine um dia comum em sua vida. Você acorda, faz o que tem que fazer, e sai da sua casa, Sem ter cometido crime algum, você é preso. Vai para um lugar que não deveria estar, em péssimas condições, e extremamente prejudicial a sua saúde física e mental. Você fica lá por 60 dias sem nem ver a cara do juiz- São dois meses de sua vida preso sem ter a chance de provar sua inocência. Agora imagine se, mesmo inocente, suas chances de continuar lá por alguns anos sejam bem reais. Isso tudo também é realidade em nosso Brasil, no século XXI.

A solução pra a criminalidade não é o punitivismo. A solução é atacar o mal pela raiz. Como?  Estabelecendo um tratamento humano aos acusados e presidiários, combatendo a desigualdade, oferecendo serviços básicos como educação, saúde, assistência social, saneamento, e oportunidades aos menos favorecidos
Um Estado forte e eficiente com capacidade para lidar com os problemas que, como uma bola de neve, persistem a séculos em nosso país. 
É preciso repensar a lógica. De tudo. Das prisões arbitrárias, passando pela introdução de penas alternativas e desencarceramento de criminosos não violentos, penas que ressocializem, e não que transformem um adolescente em um criminoso, até chegar a descriminalização das drogas, única alternativa para parar a guerra que ceifa a vida de incontáveis seres humanos todos os anos.
Para quem lucra com o sofrimento, nenhum preço é alto demais. Cabe a nós transformar a realidade que vivemos e combater o que há de pior em nosso país. Esse processo começa por nós mesmos.




Bibliografia

https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas
http://www.justificando.com/2017/05/15/desigual-justica-brasileira-uma-analise-de-dados-e-estrategias-de-mudanca/
https://www.politize.com.br/crise-do-sistema-prisional-brasileiro-causas/
https://www.dw.com/pt-br/aprisionamento-em-massa-fortalece-fac%C3%A7%C3%B5es-criminosas/a-36992697
https://vermelho.org.br/2015/09/25/camila-nunes-dias-sistema-carcerario-e-maquina-de-destruir-pessoas/
https://www.cnj.jus.br/pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres/

Comentários

  1. Muito bem! "Onde a tristeza do abuso é pra maioria / E o prazer de gozar sobra pra 1% / Um mano meu foi preso roubando manteiga, é / Saiu da tranca, quis assaltar um banco" palavras de Djonga. Triste situação de nosso país.

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    1. Perfeito amigo. Homem na estrada do Racionais mostra isso muito bem

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