A parte técnica da produção de um roteiro cinematográfico



    


    O cinema, como toda arte, é livre como um barco que navega por mares conhecidos e desconhecidos. Sua magia estimula a imaginação e promove a expansão de horizontes. Em outras palavras, por intermédio dos filmes, diversos desejos, sonhos e emoções são experienciadas. O espectador une seus próprios conflitos internos àqueles desenvolvidos durante a história através de um fio de identificação. 

    Para que tudo isso seja possível, existe uma gama enorme de profissionais por trás das tramas e, dentre eles, o roteirista. Esse é o especialista responsável por criar e escrever a história a ser gravada. A produção de cada roteiro se baseia em diversas formas de criação, podendo apresentar métodos técnicos e também experimentais.  

    Hoje, vamos apresentar um pouco da estratégia técnica usada por uma grande profissional da área e relaciona-la com diversos aspectos gerados através das inquietações de uma mente. 



(desenho do artista digital Artyom Chebokha, também conhecido como Rhads)

  



    Um roteiro é construído em cima de dois pilares: a estrutura e a potência da história. Existem filmes de potência baixa, porém com uma boa estrutura, assim como existem filmes de potência incrível, entretanto com uma estrutura ruim. Como estrutura, nos referimos à técnica utilizada, o tempo das cenas, a sequência dos acontecimentos. Como potência, nos referimos à subjetividade da história, a profundidade da mensagem passada por ela. Essa foi uma das lições que absorvi no curso Roteiro Cinematográfico dado pela roteirista Anna Muylaert. A partir dessas afirmações, fui observando como os princípios das ciências exatas e humanas caminham juntos, atingindo resultados incríveis. 

    Embora ouçamos que, genericamente, exatas reprime enquanto humanas liberta ou que humanas perturba enquanto exatas organiza, questionar é válido. Será que essa dualidade é a única forma de encarar a realidade? Se a resposta para essa pergunta for “não”, é possível reconhecer as afirmações genéricas como segregacionistas e superficiais. Na minha visão, elas absorvem apenas o mínimo daquilo que ambas diretrizes podem oferecer. 

    Quando aliamos o consciente com o subconsciente, o visível com o invisível, o dado com a interpretação, adquirimos naturalmente uma visão mais ampla dos cenários da vida.  

    Essa linha de pensamento que promove a unidade não é só válida no campo das ideias, mas também no mundo cinematográfico. Para um filme envolver o coração e a mente do espectador, é necessário que ele tenha tanto embasamentos calculistas quanto abstratos, pois a estrutura da história é tão importante quanto a potência dela. Metaforicamente, uma obra cinematográfica é como uma casa bem planificada preenchida por metáforas, inquietações e sonhos flutuantes. 



 

(imagem do filme Up - Altas Aventuras)

  

  

    Sempre vi os filmes de maneira muito poética, me atentando à escolha das cores, à profundidade da atuação, a trilha sonora e o clima de cada cena. Por esse motivo, foi muito interessante ter acesso aos aspectos mais técnicos da produção de um roteiro através desse curso, é por isso que hoje vim aqui repassar essas informações e discorrer um pouco sobre o que elas significaram pra mim. 

    A primeira ferramenta técnica apresentada no curso foi o gráfico de emoções. Esse é um gráfico de linhas, tendo a reta x e a reta y como em um plano cartesiano. A reta x, das abcissas, representa a neutralidade. Na reta Y são apresentadas diversas emoções. Os números positivos de Y representam sentimentos de tensão em ordem de intensidade (como atenção, concentração, tensão, ansiedade, espanto, medo, angústia, pânico e terror, por exemplo, em colocação crescente), enquanto que os números negativos de Y representam sentimentos de relaxamento também em ordem de intensidade (conforto, graça, contentamento, comédia, surpresa, alegria, reconhecimento, tristeza e compaixão, por exemplo, em ordem decrescente). 

    Segundo a roteirista, esse gráfico a auxilia na análise da qualidade de seu próprio roteiro e também na forma com a qual as cenas serão gravadas posteriormente. Ela comenta que um bom filme é aquele que, ao seu decorrer, cruza várias vezes a reta X representante dos sentimentos neutros, passando de emoções tensas para relaxadas e vice versa. Deste modo, a animação Divertida Mente demonstra muito bem a importância de todas as emoções dentro de um filme (ou uma vida). 


    Essa obra, dirigida por Peter Docter (e escrita juntamente com Ronaldo Del Carmen) conta a história de uma garota (Riley) que muda de casa. Em contraste com as cenas de sua vida, outras cenas retratam a cabeça da Riley, onde suas emoções são personificadas e desempenham um papel crucial na trama. A emoção que assume a liderança na vida da menina é a Alegria, enquanto a Tristeza é desprezada e vista como algo a ser neutralizado (a Alegria chega a comentar que verificou se tinha a possibilidade de removê-la, mas era impossível). Sendo assim, o filme é calorosamente feliz nos primeiros 15 minutos, até que a família se muda para a nova cidade e Riley chora de saudade. Nesse momento, uma lembrança triste é criada. Alegria tenta remover o momento choroso da cabeça de Riley e é assim que ela e a Tristeza, durante uma confusão, são mandadas para longe da “sala de comando”, ficando apenas a Raiva, Medo e Nojinho. A partir de então o filme se torna em uma aventura onde Alegria e Tristeza tentam voltar para a “sala de comando” enquanto Riley, tomada pela Raiva e incapaz de sentir tristeza ou alegria, tem experiências intensas e problemáticas. A história termina com a Alegria finalmente reconhecendo a importância da tristeza e, assim, Riley se permite chorar e desabafar com os pais. Deste modo, todos os sentimentos são reconhecidos por suas devidas importâncias e Riley, feliz por ter amadurecido experienciando todas as suas emoções, finalmente se adapta à cidade nova. 

    É impossível não reconhecer o trabalho tão bem estudado ao representar o cérebro humano e os diálogos inteligentes, engraçados e criativos entre os personagens. As cores, os sons e a fluidez dos sentimentos é realmente encantadora. Depois de apreciar tais pontos (e muitos outros), me atentei ao gráfico de emoções da história, para compreender na prática aquilo que me foi teoricamente apresentado. Os sentimentos começam felizes, com a mudança de casa acontece uma quebra de expectativas, e o sentimento de atenção assume quando a situação problema (Alegria e Tristeza saindo do comando) se inicia. Depois ocorrem momentos relaxados até o próximo momento de tensão, quando as consequências da situação problema aparecem. A frustração é seguida pelas tentativas fracassadas de solução para a trama e pelo desprezo que tratam a Tristeza (pois nesse momento, já deduzimos que ela é importante). Mais momentos engraçados ocorrem, e após isso o cenário promove a comoção por apresentar personagens querendo fazer a coisa certa, mas agindo errado. As emoções do filme mudam drasticamente quando a Alegria chora e os sentimentos passam a serem apresentados muito mais profundamente. Acontece uma espécie de “sacrifício”, deixando o clima do filme lento e melancólico, cenário que serve de combustível para a surpresa e o alívio gerado pela solução de todos os problemas. Por fim, a união dos personagens transmite felicidade novamente, porém uma felicidade mais sábia, exaltando em nossos corações a compaixão profunda. 


    Portanto, através dessa breve análise, concluímos que, de fato, Divertida Mente é um filme onde as emoções transitam de tensas para relaxadas durante a história diversas vezes. Importante lembrar que essa obra ganhou o Oscar de Melhor Filme de Animação em 2016, dentre vários outros prêmios, o que nos leva a concluir que Ana tem razão no que diz sobre variações de sentimentos em um bom filme, não é mesmo? 

    Além da análise gráfica das sensações transmitidas ao espectador ao longo do filme, existem também análises dos elementos apresentados na história. Logo abaixo está o gráfico que o artista Christophe Haubursin criou juntando as emoções personificadas apresentadas em Divertida Mente. Ele exemplifica outra forma exata de clarear conceitos humanos, ligando o subconsciente ao consciente. Essa abordagem potencializa a mensagem, tornando-a universal e facilmente comunicável. 

 



 

 

 

    É importante ressaltar que essa visão técnica das emoções de um filme auxilia a transmissão da mensagem e a produção do roteiro, gravação e montagem, mas é a arte que encanta quem assiste as obras cinematográficas. Assim, embora a clareza seja obtida por análises gráficas, o efeito magnético que atua no espectador nasce da criatividade e da sensibilidade. Músicas apaixonantes, vestimentas tão cuidadosamente escolhidas, a atenção dada à luz das cenas gravadas e a imaginação de quem criou o roteiro, por exemplo, dão vida à história. 

    Ana comenta sobre a importância de fugir do senso comum na criação do roteiro, com o objetivo de enriquecer a história e despertar a curiosidade do espectador. Um homem muito tímido não precisa necessariamente ser calmo, é interessante que ele esconda, por exemplo, uma raiva intensa. A líder invocada que causa arrepios em um grupo de pessoas não precisa ser alta, ela pode ser uma mulher jovem e baixinha. Deste modo, a ambiguidade enriquece e aprofunda os personagens. Esse conceito é reforçado por Maria Ignês Carlos Magno (Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP) quando diz “A construção das personagens é uma tarefa difícil se considerarmos que dependendo da temática da história é muito fácil cair nos estereótipos e dicotomias como a luta entre o bem e o mal, o bom e mau, o herói e o vilã”. Cuidados como esse que potencializam os roteiros pedem atenção e tempo para serem desenvolvidos. Um exemplo disso é o filme "Que Horas Ela Volta?" da Anna: ela diz que demorou 19 anos para escrever seu roteiro, é o trabalho de uma vida, feito com muito carinho. No curso, a roteirista comenta que se baseou na própria vivência para produzir o texto.


    E, afinal, não é incrível? Ver a arte usar todos esses recursos para atingir sua maior potencialidade? 


    Logo quando comenta sobre a Sequence Approach - um esquema baseado em estudos psicológicos para manter o espectador alerta e o envolver na história - Anna revela que ao invés de se sentir presa ao seguir esse método, se sente livre pra criar. Até porque, claro, a estrutura da Sequence Approach dentro dos filmes é totalmente flexível, mas serve de referência, se assim o roteirista e o diretor escolherem trabalhar. 

  

  

  

  

  

    Explicando superficialmente essa segunda ferramenta apresentada no curso, o ato 1 consiste na introdução da história, apresentações dos personagens e apresentação do conflito que vai ser desenrolado. É dividido em duas sequências de sete cenas. O ato 2 representa o progressão dos conflitos, barreiras a serem ultrapassadas e dúvidas. É dividido em cinco sequencias de cinco cenas. O ato 3 é a conclusão da história, transmutação do/dos personagem/personagens após as experiências vividas que o alteraram mesmo que minimamente. É dividido em duas sequências de cinco cenas. Cada cena tem em média dois minutos e cada sequência tem uma função levemente definida dentro do contexto da história. 

    Anna diz que, após a inspiração que faz o roteiro nascer e florescer, o estabelecimento de cenas necessárias para o desenvolvimento coeso da trama a faz se sentir livre para "recheá-la" com o que quiser. É assim que sua arte interior clama para ganhar vida e a soltura de sua imaginação vai além. Em outras palavras, a sensibilidade nutre enquanto o esquema organiza. 

  

  

 

 

  

  

    Ainda dando outro exemplo que une conceitos humanos e exatos, Anna Muylaert compara um filme com a fórmula física do movimento uniforme: S = S0 + vt. Uma obra cinematográfica é uma ferramenta poderosa de comunicação, a mensagem é passada dentro de um período de tempo (geralmente entre 90 e 120min) com uma velocidade de emoções e acontecimentos passada através dos efeitos encantadores do som, das artes visuais e da palavra até que a trama chegue ao fim e a ideia sentida seja transmitida. Tem começo, meio e fim, mesmo que seu significado e o impacto causado seja atemporal. Cinema é a arte em movimento. 

    Portanto, é como diz aquela velha frase que de tanto dita as pessoas esquecem de refletir sobre o âmago de seu sentido: a união faz a força. Unir diferentes maneiras de viver o mundo nos leva para níveis mais elevados e visões mais amplas. Abraçar aquilo que é diferente nos torna cada vez mais completos, usufruindo de todas as ferramentas que temos em mãos para enfim realizarmos o que nossos sentimentos anseiam por concretizar. 

    É claro que aqui apresentamos apenas uma das formas técnicas de montagem de roteiro, existem outras maneiras muito mais alternativas que também obtém resultados fantásticos (e particularmente acho até mais interessante). É importante ressaltar que Ana Muylaert também trouxe uma abordagem subjetiva, artística e poética de produção, mas aqui expus sobretudo a parte estratégica. O objetivo dessa publicação, além de apresentar alguns conhecimentos adquiridos através de um curso, foi também refletir sobre a junção de conceitos divergentes.

    Dentro do contexto da arte audiovisual, os valores exatos auxiliam em muitos aspectos. Assim, valores subjetivos também são necessários em diversos processos estruturais – como na administração de funcionários de uma empresa, relação produtividade e saúde mental, mas isso é outra história. O distinto não precisa ser separado, pois é através da diversidade que os processos e resultados são enriquecidos. A completude do mundo é feita através da variedade de mentes, corações, sonhos, objetivos e personalidades. A comunicação entre opostos pode levar ambos até um patamar que nenhum imaginaria sozinho. 


    Espero que tenham gostado! 

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